domingo, novembro 13, 2005

2056 - velhos

Acordo numa manhã cinzenta de domingo. Vejo-me ao espelho com algum terror: estou velho. Felizmente, na minha casa de banho encontro as minhas pomadas e cremes, e após me barrar com eles, sinto-me mais novo. Se antes me sentia com 94 anos, agora sinto-me com 54, embora tenha de facto 74. Tenho é de sorrir pouco, pois é bem sabido o mal que os sorrisos fazem a estes cremes.

Saio para a rua. Vou trabalhar pensando que os meus pais a esta idade já eram reformados, que engraçado. Cumprimento a D. Fátima que passa ao meu lado, aparentando os seus 50 anos, mas sabendo eu que pertence à minha geração. "bom dia"
"bom dia." "Então a sua irmã como vai?" "Bem, melhor agora. Sabe que os serviços hoje em dia são mais dignos que nunca. Ela na semana passada andava algo esquisita, e quando começou a espirrar, os filhos fizeram o que deviam."
"ahh pois. E correu bem, então?" "Sim, embora ela parecesse algo triste. Mas o serviço convenceu-a de que a sua morte seria digna. Também o que ela queria? Já pouco trabalhava, andava tristonha pela casa... e depois o espirro!"
"Pois... são já os sinais, não é?" - faço eu um esforço enorme para conter a minha alergia súbita. Estes perfumes matam-me.
"Os serviços são bastante úteis: dão uma lista precisa dos sinais a ter em atenção. Eu claro, nunca os tive. E quando os tiver, darei o passo condignamente."
"Claro claro, D. Fátima!"
"O senhor é que me parece um pouco branco, sr. Luís"
"É do tempo, está acizentado, e este ano evitei a praia..."
"Evitou a praia? Porquê? Está doente? Mas sabe que os novos protectores são ainda mais eficazes do que a camada de ozono..."
"Não, não, é... foi do trabalho sabe..."
"Ah, pois. Eu é que não abdico, gosto de ir à praia e bronzear o meu corpo. Olhe que no outro dia vi uma fotografia antiga, do meu avô - sabe aquele que disparatou imenso quando lhe propuseram o serviço, era louco - na praia, e fiquei enojada. Não é que aquela gente tinha cá umas coisas a sair do seu corpo, umas listas, como se fossem todos gente pobre..."
"Sim, as banhas, os pneus..."
"Mas não era só isso, era horrível, como se a pele ficasse às borbulhas, as mulheres cheias de pêlos. Horrível horrível. Admiro essa geração pela sua coragem, mas não admira que fosse um pouco louca..."
"Claro... bem, gostei muito de a ouvir. Vou para a estação. Para onde a menina vai?"
"Vou ver a minha menina. Foi fazer uma desinfestação de 5 semanas, só então é que se apercebeu..."
"... que estava grávida."
"Que maneira você tem de falar, parece um pouco como o meu avô. Bem, foi a quinta vez este ano, e tenho de lhe dizer que isto tem de acabar. Nem sequer sabe controlar o seu corpo? Basta tomar um comprimido nas manhãs seguintes... vem ela e diz que quer sentir a coisa mais natural... é compreensível."
"Bem, eu vou andando, tenho de ir para o meu ateliêr. Vou desenhar um «desinfestador». É o que hoje mais se desenha..."

E lá fui eu, tentando não sorrir e escondendo a cada vez mais constante tosse. Nem sei porque o faço, pois se significasse que os sinais me fossem dirigidos, não teria eu a coragem de fazer o que é digno? Talvez não. Sou um cobarde! Ah, enfim quanto não me valem os amigos dignos que me cercam e me aconselham sobre o melhor que é preciso fazer.

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