domingo, janeiro 17, 2010

Fruta fresca!

Um dia destes acordei sem pé direito. De início pensei que estava a meio de mais um sonho primaveril, mas foi então que tentei sair da cama. Ora, como a perna direita é a primeira a sair da cama e a apoiar-se no chão, a falta do meu pé fez-me desequilibrar com a surpresa. O meu corpo todo inclinou-se para a direita e a minha boca foi aterrar na mesinha de cabeceira. Com o impacto perdi os dois dentes da frente e senti sangue a escorrer-me pelo nariz.

Estive uns minutos a tentar recuperar o fôlego, altura em que alguém na rua começou a chamar por mim em voz aguda. Pensei que fosse a mulher da fruta, que passava sempre nos fins-de-semana e por isso levantei-me e fui ao pé-coxinho até à janela.

Quando lá cheguei, vi que quem me chamava era um vagabundo com três pés, dois nos locais normais e outro bem seguro entre a mão direita. Acenou-me com este e depois pôs-se a abaná-lo como um leque, piscando rapidamente as pálpebras, como fazem as damas de alta sociedade. Enquanto fazia isto continuava a chamar-me com voz de mulher da fruta:

- Samueeeel! Samueeelzinho! Samueeel! Olha o que eu aqui tenho, Samuel!
- É um pé, já vi!
- É um pé, diz ele! Ahahah! O sacana! É um pé, diz o farsante! É o teu pé Samuelzinho! E fede que nem um bode velho, muito agradecido!
- O meu pé? Quem mo pode garantir. Tantos pés pela cidade fora, aos pares, logo esse havia de ser o meu! Ainda por cima é mais negro que o meu! Põe -te mas é a andar, mulher da fruta.
- O quê? Mulher da fruta?
- Ah, perdão! Senhor Comendador!
- Senhor Comendador?
- Onde está ele?
- Quem?
- O Sr. Comendador?
- Sei lá, eu não sou do distrito!
- Ah bom, veio vender fruta foi?
- Não, venho vender pés, imbecil. E tenho aqui o teu.
- O meu? Mostre cá! Não pode ser. O meu é muito mais negro. Se bem que a unha grande se parece com a minha. Diga-me lá, tem ondulação lateral ou longitudinal em relação ao crescimento da unha?
- Que é lá isso?
- Se tem ondinhas de cá para aí, ou de além para ali!
- Ah bom. De além para ali!
- Quantas?
- 8 ou 10!
- É o meu pé, sim senhor! Por quanto mo vende?
- 100 dinheiros.
- 100 dinheiros por um pé? Ainda para mais tão pequeno e amarelado?
- É pegar ou largar.
- Espere que já desço e fazemos negócio à vista.

Vesti-me e fui até à casa de banho lavar o rosto, coberto ainda de sangue. Quando me mirei no espelho reparei que tinha um sorriso belo, sem uma falha. E os dentes branquinhos e perfeitos. Mas infelizmente, faltava-me o olho esquerdo, que certamente saltara aquando do impacto no frigorífico ao lado direito da cama. Não tinha tempo de o procurar, por isso coloquei um pouco de pasta de dentes branca na órbita vazia e arranjei um botão castanho da camisa para fazer de íris.

Desci as escadas aos saltinhos e quando cheguei à rua, o vagabundo vendia fruta a um velhote que passava.

- Ah! Que é isso agora? Fruta? E o meu pé?
- Samuel, acabo de comprar esta couve a um velhote que passou! Por uma pechincha em abono da verdade!
- Seja! E o pé?
- Cá está ele!
- Humm... 150 dinheiros é o máximo que posso dar!
- Não faço a coisa por menos de 200!
- 200? Mas ainda há pouco mo querias vender por 170!
- Inflação!
- Inflação?
- Sim, inflação!
- Onde?
- Isso aí no seu olho!
- Aqui no esquerdo?
- Sim, inflação!
- Que inflação. Isto foi uma inflamação que tive ontem e ainda não passou.
- Inflação, como eu te tinha dito. Samueeeel. E voltou a usar o pé como um leque e a fechar as pálpebras, à laia de senhora da sociedade.
- Então 100 pelo pé?
- 280!
- 280? Mas há bocado querias apenas 50 por ele!
- É por causa do teu olho esquerdo. É feio. Parece um botão em pasta de dentes.
- Bom, é verdade! Foi da inflamação! Mas vejo lindamente com ele! Fiquemos então pelos 250 dinheiros?
- Seja. Cá o tem Samueeeelzinho!
- Muito obrigado!

Atarrachei o pé muito satisfeito.

- E agora Samuel, por acaso não me quer comprar uma couve?



[Long time ago... fraca tentativa de fazer lembrar Daniel Harms... mas siga!]