terça-feira, setembro 11, 2007

Dois minutos de ódio



Mais um instante, e um guincho horrendo, áspero, como de uma máquina monstruosa funcionando sem óleo, saiu do grande televisor. Era um barulho de ranger os dentes e arrepiar os cabelos da nuca. O ódio começara.


Como de hábito, a face de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Aqui e ali houve assobios entre o público. A rapariga loira emitiu um uivo misto de medo e repugnância. Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos ninguém se lembrava) fora uma das figuras de proa do Partido, quase no mesmo plano que o próprio Grande Irmão, tendo depois se dedicado a actividades contrarrevolucionárias, sendo por isso condenado à morte, da qual escapara, desaparecendo misteriosamente. O programa dos Dois Minutos de ódio variava de dia a dia, sem que porém Goldstein deixasse de ser o personagem central quotidiano. Era o traidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido. Todos os subsequentes crimes contra o Partido, todas as traições, actos de sabotagem, heresias, desvios, provinham directamente dos seus ensinamentos. Nalguma parte do mundo ele continuava vivo e planeando as suas conspirações: talvez no além-mar, sob proteção dos seus patrões estrangeiros; talvez até mesmo - de vez em quando corria o boato - nalgum esconderijo na própria Oceania.

(...)


No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Grande Irmão, de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo de palavras que se pronunciam no calor do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo facto de serem ditas. Então o rosto do Grande Irmão desapareceu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito: GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA


in 1984, George Orwell

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